Quase um século e meio após a morte de Edgar Allan Poe (1809-1849), permanece um curioso descompasso entre a reputação do autor no seu próprio país e sua fortuna crítica no resto do mundo. No exterior, Poe não é apenas o criador do conto detetivesco e o Vincent Price da literatura por que o tomam nos EUA: é também considerado um artista notável, um poeta refinado. E não se pense que o culto europeu a Poe, iniciado por Baudelaire e Mallarmé, é um fenômeno restrito ao mundo de fala francesa ou ao século 19; ninguém menos do que o irlandês Yeats, um dos maiores poetas de expressão inglesa de nosso século, considerava-o um grande poeta.Porém a crítica norte-americana jamais conseguiu entender o que os europeus vêem em Poe. Já em 1876, Henry James repreende o poeta das "Flores do Mal" por sua excessiva poelatria, e observa que "levá-lo mais do que moderadamente a sério é sinal de falta de seriedade". E em 1968, em sua história da poesia americana, Hyatt Waggoner, escrevendo a respeito de um poema de Poe, fala em "dicção canhestra", "rimas involuntariamente cômica” e "efeito grotesco". O poema desancado por Waggoner nesses termos é "O Corvo".Numa passagem famosa, Coleridge afirma que o gozo estético requer uma "suspensão voluntária da incredulidade". Talvez o que Poe peça de nós seja algo um pouco diferente: a suspensão voluntária do senso do grotesco ou mesmo do ridículo. Sem dúvida, o "enredo" de "O Corvo" (pois se trata de um poema narrativo) é, a se pensar friamente, coisa de filme B; o ritmo é tão mecânico e previsível quanto o de uma aparição de trem fantasma; além disso, o excesso de rimas e aliterações chega a doer em ouvidos mais sensíveis.No entanto, no entanto... Mesmo relido pela enésima vez, o poema proporciona um inegável prazer, ainda que envergonhado, como o que alguns adultos sentem ao provar certas balas baratas vendidas à porta dos colégios. E relido logo em seguida, com uma certa sobriedade, tentando pôr de lado as dezenas de leituras demasiadamente enfáticas, feitas ou ouvidas na infância, a bala barata se transforma num confeito mais sutil, com um agradável travo amargoso por trás das camadas de caramelo e açúcar-cande. Que James e Waggoner nos perdoem, mas "O Corvo" é, no mínimo, inevitável.Mas não intraduzível, como demonstra "'O Corvo' e suas Traduções". A primeira reação ao se folhear o livrinho -e a capa de Victor Burton é um convite irresistível aos olhos e aos dedos- é de espanto: pois nele vamos encontrar -após o prefácio de Carlos Heitor Cony, a introdução do organizador e as duas clássicas versões em prosa francesa de Baudelaire e Mallarmé- nada menos que sete traduções do poema para o português, todas em versos. No seu texto introdutório, Barroso dá ao leitor as informações básicas sobre o famoso poema e esmiúça os intrincados efeitos sonoros da primeira estrofe.A análise é útil, porém ressente-se de uma certa confusão entre fonema e letra: ao ilustrar as aliterações em "t", Ivo Barroso cita, ao lado de "midnight", "forgotten" e outros exemplos relevantes, "this" e "nothing", em que o dígrafo 'th' designa duas fricativas linguodentais -(D) e (T), respectivamente- que são muito diferentes da oclusiva (t). Seria o mesmo que ver uma aliteração entre o "c" de "casa" e o de "cena" (crítica análoga se aplica aos comentários sobre a insistência de tons em "o").Mas Barroso pisa em terreno mais firme quando passa a examinar as traduções do poema. Em relação à mais antiga delas, a de Machado de Assis, ele mostra como os escrúpulos parnasianos do bruxo do Cosme Velho o impedem de tentar reproduzir os longos versos do original, levando-o a adotar uma confusa estrofe de metros variados que destrói por completo o efeito hipnótico do original- e "O Corvo" sem hipnose é filme de Hitchcock sem suspense.Sobre as traduções de Emílio de Meneses e de Benedito Lopes, que transformam a balada de Poe em untuosos ciclos de sonetos -Lopes chega a esticar as 18 estrofes do original em 22 sonetos!-, Barroso prefere calar-se, revelando ao mesmo tempo bom gosto e tato; pois certamente não teria nada de bom a dizer.Assim, Barroso se detém na comparação entre três versões que tentam reproduzir as características formais do original -as de Fernando Pessoa, Gondin da Fonseca e Milton Amado- e conclui que a de Milton Amado é a superior. Seria impossível resumir neste espaço a argumentação com que o ensaísta defende sua escolha.Porém, embora reconhecendo os méritos da tradução de Amado, devo confessar que continuo partidário da esplêndida versão de Fernando Pessoa. E não é só porque o poeta português, ao contrário de Amado, mantém uma fidelidade absoluta ao esquema de rimas do original, não deixando inclusive de rimar sempre o 2º, o 4º e o 5º versos de cada estrofe com o "mais" do estribilho. O que sempre me pareceu o toque de gênio de Pessoa foi à idéia de omitir o nome de Lenora, pegando o mote do próprio Poe: afinal, o poeta não afirma na segunda estrofe que a amada falecida não tem mais nome aqui na Terra?Resta dizer que a tradução de Alexei Bueno, a qual Barroso não comenta (certamente por não conhecê-la quando escreveu seu ensaio), é, a meu ver, uma jóia do mesmo quilate que a de Pessoa. Recriações como as de Pessoa e Bueno (e a de Amado também, vá lá) nos levam a retomar o poema inglês, relê-lo lado a lado com o português, em voz alta-pois tem razão Barroso quando afirma que "O Corvo" é "um grande poema oral"- e nos perguntar o que é melhor, a tradução ou o original. De uma coisa, porém, não resta dúvida: Hyatt Waggoner não sabia o que estava perdendo.
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