sexta-feira, 27 de agosto de 2010

A cruz é um dos símbolos cuja presença é atestada desde a mais alta Antiguidade:



A cruz é um dos símbolos cuja presença é atestada desde a mais alta Antiguidade: no Egito, na China, em Cnossos, Creta, onde se encontrou uma cruz de mármore do séc. XV a.C. A cruz é o terceiro dos quatro símbolos fundamentais, juntamente com o centro*, o círculo* e o quadrado*. Ela estabelece uma relação entre os três outros: pela interseção de suas duas linhas retas, que coincide com o centro, ela abre o centro para o exterior; inscreve-se no círculo, que divide em quatro segmentos; engendra o quadrado e o triângulo, quando suas extremidades são ligadas por quatro linhas retas. A simbologia mais complexa deriva dessas singelas observações: foram elas que deram origem a linguagem mais rica e mais universal. 

Como o quadrado, a cruz simboliza a terra; mas exprime dela aspectos intermediários, dinâmicos e sutis. A simbólica do quatro* está ligada, em grande parte à da cruz, principalmente ao fato de que ela designa certo jogo de relações no interior do quatro e do quadrado. A cruz é o mais totalizante dos símbolos.
Apontando para os quatro pontos cardeais*, a cruz é, em primeiro lugar, a base de todos os símbolos de orientação, nos diversos  níveis de  existência  do   homem. A orientação total do homem exige... Um triplo acordo: a orientação do sujeito animal com relação a ele mesmo;  a orientação espacial, com relação aos pontos cardeais terrestres; e, finalmente, a orientação temporal com relação aos pontos cardeais celestes. A  orientação espacial se articula sobre o eixo Este-Oeste, definido pelo nascer e pôr-do-sol. A orientação temporal se articula sobre o eixo de rotação da Terra ao mesmo  tempo Sul-Norte  e  Em baixo, e em cima. O cruzamento desses dois eixos maiores realiza a cruz de orientação total. A concordância, no homem, das duas orientações, animal e espacial, põem o homem em ressonância com  o  mundo  terrestre ima­nente; a das três orientações, animal, espacial e temporal, com o mundo supra temporal transcendente pelo meio terrestre e através dele. Não seria possível condensar melhor os significados múltiplos e ordenados da cruz. Uma síntese semelhante se verifica em todas as áreas culturais e se expande nelas em inúmeras variações e ramificações.

Na China, o número da Cruz é o 5, A simbólica chinesa... Ensinou-nos de novo a não considerar jamais os quatro lados do quadrado ou os quatro braços da cruz fora da sua relação necessária com o centro da cruz ou com o ponto de interseção dos seus braços... O centro do quadrado coincide com o do círculo. Esse ponto comum é a grande encruzilhada do imaginário.

A cruz tem, em conseqüência, uma fun­ção de síntese e de medida. Nela se jun­tam o céu e a terra... Nela se confundem o  tempo e o espaço... Ela é o cordão umbilical, jamais cortado,  do cosmo ligado ao centro original. De todos os símbolos, ela é o mais universal, o mais totalizante. Ela é o símbolo do intermediário, do mediador, daquele que é, por natureza, reunião permanente do  universo e comunicação terra-céu, de cima para baixo e de baixo para cima. Ela é a grande via comunicação. É a cruz que recorta, ordena e mede os espaços sagrados, como os templos*; é ela que desenha as praças nas cidades; que atravessa campos e cemitérios. A interseção dos seus braços marca as encruzilhadas*; nesse ponto central ergue-se um altar, uma pedra, um mastro. Centrípeta, seu poder é também centrífugo. Ela explicita o mistério do centro. É difusão,  emanação. . . Mas também ajuntamento, recapitulação.
            A cruz tem, ainda, o valor de símbolo ascensional. Numa adivinha  medieval alemã, fala-se de  uma  árvore*   cujas   raízes estão no  inferno  e  a rama  no  trono de Deus o que engloba o Mundo entre os seus galhos. Essa árvore é, precisamente, a cruz. Nas lendas orientais, ela é a ponte ou a escada de  mão pela qual os homens chegam a Deus. Em certas variantes, a madeira da cruz tem sete degraus,  da  mesma que as árvores cósmicas representam os sete céus.
A tradição cristã enriqueceu prodigiosamente o simbolismo da cruz, condensando nessa  imagem  a história da salvação e a paixão do Salvador.  A  cruz simboliza  o Crucificado, o Cristo, o Salvador, o Verbo, a segunda pessoa da Santíssima Trindade. Ela é  mais que uma figura de Jesus, ela identifica com sua história humana, com sua pessoa. Celebram-se festas da Cruz: Invenção, a Exaltação da Cruz. Cantam-se hinos em sua honra: O Crux, spes unica. Ela também tem sua história: sua madeira veio de uma árvore plantada por Seth sobre o túmulo  de Adão, e espalha fragmentos depois da morte do Cristo através de todo o universo, onde multiplica os mila­gres. E a cruz reaparecerá entre os braços do Cristo por ocasião do Juízo Final. Não existe símbolo mais vivo. Acresce que iconografia cristã se apoderou dela para exprimir o suplício do Messias, mas também a sua presença. Onde está a cruz, aí  está o crucificado. A cruz sem cabeça (o tau, T); a cruz com cabeça e uma só barra horizontal; a cruz com cabeça e duas barras transversais; a cruz com cabeça e três barras transversais.
Os diversos sentidos que a simbólica lhe atribui não tem nada de absoluto. Eles não se excluem uns aos outros. Um não é ver­dadeiro e o outro falso. Exprime cada qual, uma percepção vivida e interpretada em símbolo.
A cruz em Tau simbolizaria a serpente fixada em uma estaca, a morte vencida pelo sacrifício. Já no Antigo Testamento ela se revestia de um sentido misterioso. Foi porque a madeira do sacrifício que ele levava aos ombros tinha essa forma que Isaac foi poupado: um anjo deteve o bra­ço de Abraão que ia imolar o filho.

A cruz com um braço transversal é a cruz do Evangelho. Seus quatro braços  simbo­lizam os quatro elementos  que foram vi­ciados na natureza humana, o conjunto da humanidade atraída para o Cristo dos qua­tro cantos do mundo, as virtudes da alma humana. O pé da cruz enterrado no chão significa a fé assentada em profundas fun­dações. O ramo superior da cruz indica a esperança que sobe para o céu; a enverga­dura da cruz é a caridade que se estende mesmo   aos   inimigos;   o  comprimento  da cruz é  a perseverança até o fim.  A cruz grega, de quatro braços  iguais, pode  ins­crever-se num quadrado. A cruz latina di­vide desigualmente o madeiro vertical se­gundo as dimensões do homem de pé, com os braços estendidos, e só pode ser inscrita num retângulo. Uma é idealizada, a outra realista. De um patíbulo, os gregos fizeram um  ornamento.  As   igrejas gregas e latinas foram geralmente projetadas para formar no solo uma cruz, grega no  Oriente,  latina no Ocidente.  Mas  há exceções.
A cruz com dois braços transversais re­presentaria, no braço superior, a inscrição derrisória de Pilatos, Jesus de Nazaré, rei dos judeus. O braço inferior seria aquele em que se estenderam os braços do Cristo. É a cruz dita "de Lorena", mas que provém, na realidade, da Grécia, onde é comum. A cruz com três braços transversais tor­nou-se um símbolo da hierarquia eclesiás­tica, correspondendo   a   tiara   papal, ao chapéu cardinalício e à  mitra episcopal. A partir do séc. XV, só o papa tem di­reito à cruz com três braços transversais; a cruz dupla se fez privativa do cardeal e do arcebispo; a cruz simples, do bispo.
Distingue-se igualmente a cruz da paixão e da ressurreição. A primeira recorda os sofrimentos e a morte do Cristo; a segunda, sua vitória sobre a morte. É por isso que ela é, em geral, adornada de uma bandeirola ou um galhardete e se parece com um estandarte ou labarum que o Cristo brandiria ao sair do sepulcro e cuja haste termina em cruz e não em ponta de lança. . . Já não é uma árvore, como na cruz da paixão, mas um bastão, diríamos, até, um cetro. É um patíbulo transfigurado.

Nos desenhos de cruzes gregas com dois braços transversais vêem-se as iniciais gre­gas do nome de Jesus Cristo e a palavra NIKE, que significa vitória. Ao pé de uma dessas cruzes se erguem um falcão* de asas abaixadas e uma águia* de asas aber­tas; ao pé da outra cruz, dois pavões* de caudas oceladas; uma dessas cruzes é tran­çada* de fitas, significando a união das duas naturezas, humana e divina, no Verbo encarnado; e outra cruz é feita de fitas entrelaçadas, com a mesma significação.
Na sua História de Deus, tão rica sob tantos aspectos, M. Didron dá um perfeito exemplo do adoçamento do símbolo em alegoria, e isso o leva, a nosso ver, a um verdadeiro contra-senso numa de suas in­terpretações. Ele registra um grande núme­ro de cruzes gregas aos pés das quais se afrontam animais que, diz ele, olham com terror ou com amor o signo da redenção sob o qual eles parecem humilhar-se. O leão*, a águia*, o pavão*, o falcão* são os animais que mais freqüentemente se vêem. A águia e o pavão, emblema do orgulho; o falcão e o leão, que lembram a violência cruel e a crueldade grosseira, poderiam muito bem significar que essas más paixões são obrigadas a passar sob o jugo da cruz. A pomba e a ovelha, que se encontram amiúde nos afrescos das cata­cumbas e nos sarcófagos antigos poderiam anunciar que as virtudes brotam da cruz como os vícios são abatidos por ela. Aqui, a alegoria só reteve um aspecto do símbo­lo, o mais exterior, o mais afastado da sua realidade profunda. Pensamos, ao contrá­rio, que todas essas figuras não fazem mais que exprimir um dos aspectos da figura inumerável do Cristo. Nenhuma imagem esgota a riqueza do Verbo Encarnado, como nenhum nome traduz o infinito da divindade. Remeta-o o leitor aos verbetes que lhes são reservados. O leão afirma a realeza do Cristo, que triunfa da morte pela sua morte na cruz; o pavão de asas oceladas sig­nifica a revelação pelo Verbo da Sabedoria divina, a manifestação da Palavra e da Luz; a águia revela a sublimidade do Sal­vador, que vive nas alturas; o falcão, a perspicácia da visão profética.
Esses animais não estão esmagados ao pé da cruz, como acontece em outros casos. Estão de pé, direitos, em toda a sua glória. Por que ver aqui oposição, e dizer que há semelhança com o Cristo quando são pom­bas e cordeiros os animais representados? É o mesmo processo de identificação que vale para todos esses animais ao pé da cruz. Quando eles não são esmagados, ser­vem para pôr em relevo, simbolicamente, um dos aspectos da própria personalidade do Redentor.
Em outras cruzes características, obser­vam-se as duas primeiras letras de Christos, em grego, XP, o Rho atravessando o X como um eixo vertical. Observam-se, igual­mente, o A e o ?, i.e., o alfa* e o ômega*, significando que o Cristo é o começo e o fim da evolução criadora, o ponto alfa e o ponto ômega. Outras monogramas apre­sentam no mais curto dos braços (com sêxtupla ramificação) as iniciais de Jesus Christo, o iota servindo de eixo em lugar do Rho. 

Alguns desses monogramos inscre­vem-se num quadrado, referindo-se, dessa maneira, à vida terrestre e humana do Cristo. Outros, num círculo, como numa roda mística, evocando sua vida celeste e divina.
O poder do simbolismo nos primeiros séculos cristãos revela-se ainda na cruz mística, gravada na pedra, que reproduzi­mos. O sinete traz gravada uma cruz em tau (T); o chi (X) atravessa a haste do tau, que se arredonda em rho (P) por cima. O nome do Cristo e a forma da sua cruz estão resumidos nessas linhas. O Cristo, filho de Deus, é o começo e o fim de tudo; o A e O ? Começo e fim dos signos intelectuais e, por extensão, da própria in­teligência, e da alma humana, escoltam, por assim dizer, a cruz, à direita e à esquerda. A cruz esmagou a domou Satanás, a antiga serpente. A serpente se enrola, então, acorrentada, ao pé da cruz. Esse inimigo do gênero humano procura pôr a perder  a alma, que é representada sob a forma de uma pomba. Mas a pomba, por ameaçada que esteja, olha a cruz, de onde lhe vem à força, e que a salva do veneno de Satã. A palavra SALUS, escrita no solo que sustenta a cruz e as pombas, é o canto de triunfo que o cristão fiel entoa em hon­ra de Jesus e da cruz.
Prosseguindo sua evolução no mundo dos símbolos, a Cruz se torna o Paraíso dos Eleitos. Uma edição da Divina Comé­dia, de 1491, mostra a cruz no meio de um céu estrelado, cercada de bem-aventurados em adoração. A cruz é, então, o símbolo da glória eterna, da glória conquis­tada pelo sacrifício e culminando numa felicidade extática. Só Dante poderia evocar uma visão dessas:
... Sobre essa cruz o Cristo resplande­cia a tal ponto que eu não saberia encon­trar imagem para representá-lo;
mas aquele que toma a sua cruz e segue o Cristo me desculpará por não saber ex­primi-lo, quando vir, na dita claridade, o Cristo brilhando como o relâmpago...
Nas tradições judaicas e cristãs, o sím­bolo crucífero pertence aos ritos primitivos de iniciação. 

A cruz cristã é anunciada por figuras no Antigo Testamento, como os montantes e barrotes das casas dos judeus, marcados com o sangue do cordeiro sob um signo cruciforme; cordeiro assado so­bre duas achas apresentadas em forma de cruz.
A cruz recapitula a criação, tem um sen­tido cósmico. É por isso que Ireneu pode escrever, falando do Cristo, e da sua cru­cifixão: Ele veio sob uma forma visível para junto do que lhe pertence, e ele se fez carne e foi pregado na cruz de modo a resumir em si o Universo.
A cruz se torna, assim, o pólo do mun­do, como afirma Cirilo de Jerusalém: Deus abriu suas mãos sobre a cruz para abraçar os limites do Ecúmeno, e por isso o monte Gólgota ê o pólo do mundo. Gregório de Nissa falará da cruz enquanto sinal cósmico (Oratio de resurrectione). Lactâncio escreve: Deus, no seu sofrimento, abriu os braços e abraçou o círculo da terra. Os autores da Idade Média reto­maram o tema da cruz cósmica, que Agos­tinho valoriza em De Genesi ad litteram.

A presença  da  cruz é visível  na natureza. O Homem de braços abertos simboliza a cruz. O mesmo se pode dizer do vôo dos pássaros, do navio com seu mas­tro, dos instrumentos de arar a terra. Assim, Justino, na sua Apologia, enumera tudo o que contém a imagem da cruz. A lista das cruces dissimulatae com­porta o arado, a âncora, o tridente, o mas­tro do navio com sua verga, a cruz ga­mada etc.
A cruz assume os temas fundamentais da Bíblia. Ela é árvore da vida (Génesis 2, 9), sabedoria (Provérbios, 3, 18), ma­deira (a da arca de Noé, a das varas de Moisés que fizeram brotar água da pedra, a árvore plantada junto das águas corren­tes, o bastão ao qual está suspensa a ser­pente de bronze). A árvore da vida sim­boliza, reciprocamente, o madeiro da cruz, donde a expressão empregada pelos latinos: sacramentum ligni vitae. Barnabé também descobre no Antigo Testamento todas as prefigurações da cruz.                                
Convém sempre distinguir a cruz do Cristo padecente, a cruz patíbulo, da cruz gloriosa, que deve ser vista num sentido escatológico. A cruz gloriosa, cruz da parusia, que deve aparecer antes da segunda vinda do Cristo, é o signo do Filho do Homem, signo do Cristo ressuscitado (v. o texto de Dante, já citado).
A cruz é ainda, na teologia da redenção, o símbolo do resgate devido por justiça e do anzol que pescou o demônio. Toda uma tradição exige a necessidade de um resgate ao demônio, baseado numa certa justiça. Esta intervém nas fases da economia re­dentora. O sacrifício da cruz era necessário e necessário, em consequência, a morte do Cristo para que o homem fosse liber­tado dos efeitos do pecado. Donde o uso freqüente do termo "resgate". A cruz lem­bra uma espécie de anzol que fisga o demônio, imobilizando-o e impedindo que ele prossiga sua obra.
São Boaventura compara também a Cruz do Cristo à árvore* da vida: A cruz é uma árvore de beleza; sagrada pelo sangue do Cristo cobre-se de todos os frutos.
A madeira da verdadeira cruz do Cristo ressuscita os mortos, segundo uma velha crença, Deve tal privilégio ao fato de ser essa cruz feita com a  madeira da  árvore da vida plantada no paraíso.
Na explicação da cruz celta, é necessário remeter o leitor ao simbolismo geral da cruz. Mas a cruz celta se inscreve num círculo que suas extremidades ultrapassam, de modo que ela conjuga o simbolismo da cruz e o do círculo. Poder-se-ia acrescen­tar um terceiro: o do centro, pelo fato da existência de uma pequena esfera no cen­tro geométrico da cruz e no meio dos bra­ços de inúmeros exemplos arcaicos de cruz. No curso dos primeiros períodos da arte irlandesa, as cruzes eram completamente inscritas no círculo e desprovidas de qual­quer decoração. Num segundo estádio de estilo, os braços ultrapassam ligeiramente o círculo. Por fim, as cruzes são maiores, cobertas e rendilhadas. É  pos­sível   reconhecer   na   cruz   irlandesa   sím­bolos   celtas   coincidindo   com   o   simbo­lismo   cristão.   A   correspondência   quater­nária ilustra  a   repartição dos quatro  ele­mentos:   ar, terra,  fogo,   água,  e   de  suas qualidades tradicionais: quente, seco, úmido e frio. Ela coincide com a divisão da Irlanda   em   quatro   províncias   com   uma quinta ao centro, constituída pela ablação de uma parte de cada uma das quatro ou­tras.  São  também  os  Quatro  Mestres   da tradição analítica  (que correspondem aos quatro evangelistas) e o sobrenome de São Patrício (Patrick), Coithrige (servidor) dos quatro. Os dois eixos da cruz fazem pensar ainda  na passagem do tempo, nos pontos cardeais do espaço, e o círculo recorda os ciclos da manifestação.  Mas o centro, no qual não há mais nem tempo nem mudan­ça de nenhuma espécie, é o sítio de pas­sagem ou de comunicação simbólica entre este e o Outro - Mundo. É um ônfalo, um ponto de ruptura do tempo  e  do espaço. A estreita correspondência das antigas con­cepções celtas  e de dados  esotéricos  cristãos permite pensar que a cruz inscrita no círculo  tenha  representado para os  irlan­deses do período carolíngio uma síntese íntima e perfeita do cristianismo e da tradi­ção celta.
Na  Ásia, se o simbolismo da cruz não tem a mesma riqueza mística que no mundo cristão, não deixa de ter relevância. Não seria o caso de estudar em algumas linhas um simbolismo tão vasto quanto o da cruz, ao qual Guénon consagrou um volume inteiro. Tal simbolismo repousa essencialmente sobre o fato de que a cruz é com pelo cruzamento de eixos direcionais, se podem considerar de diversas maneiras, seja neles mesmos, seja no seu cruzamento central, seja na sua irradiação centrífuga. O eixo vertical pode ser considerado como ligação entre uma hierarquia de graus ou estados do ser; o eixo horizontal como o desabrochar do ser em um grau determinado. O eixo vertical pode figurar a atividade do Céu ou de Purusha; o eixo horizontal, a superfície das Águas, sobre a qual ela se exerce, e que corresponde à Prakriti, a substância universal passiva. Os dois eixos são, ainda, os dos solstícios e equinócios, ou o encontro desses com o eixo dos pólos. Obteríamos, então, uma cruz em três dimensões, que determina as seis direções do espaço.
A cruz direcional, que divide o em quatro, é intermediária entre o círculo e o quadrado, entre o Céu e a Terra, o símbolo, portanto, do mundo intermediário, e também o do Homem universal, na Tríade chinesa. É segundo São Martinho, o emblema do centro, do fogo, do Intelecto, do Princípio. Convergência das direções e das oposições, local do seu equilíbrio, o centro da cruz corresponde efetivamente ao vazio do meio, à atividade central não-operante, ao Meio Invariável (tchong-yong). A cruz é também — acabamos de perceber que o círculo dividido por ela era uma roda — o emblema da irradiação do centro, solar ou divino. Porque ela significa a totalidade do espaço, a cruz representa na China o número 10, que contém a totalidade dos números simples (Wieger).

A cruz vertical e central é, ainda, o eixo do mundo, o que está bem exemplificado no globo que tem ao alto uma cruz polar, símbolo imperial que os alquimistas identificavam com o cadinho regenerador.
Cumpre ainda lembrar o plano cruciforme dos templos hindus e das igrejas, nos quais a cabeça corresponde à abside, os braços ao transepto, o corpo e as pernas à nave, o coração ao altar ou ao lingam.
Encontra-se em Abu Ya'qub Sejestani uma interpretação esotérica toda particular do símbolo da Cruz, cujos quatro braços são identificados às quatro palavras da Shahada, que é a profissão de fé muçul­mana.

No Egito, a Cruz ansada (Ankh*), mui­tas vezes confundida com o nó de Isis, é o símbolo de milhões de anos de vida fu­tura. Trata-se de um signo formado por uma argola redonda ou oval da qual pende uma espécie de Tau. Lembra um nó de fita. É um dos atributos de Ísis, mas pode ser visto na mão da maior parte das divin­dades, como emblema da vida divina e da eternidade.
Nas mãos dos mortais, ela exprime o desejo de uma eternidade venturosa, na companhia de Ísis e Osíris. Seu círculo é a imagem perfeita daquilo que não tem nem começo nem fim... a cruz figura o estado de transe, no qual se debatia o ini­ciado; mais exatamente, ela representa o estado de morto, a crucificação do eleito e, em certos templos, o iniciado era deitado pelos sacerdotes num leito em forma de cruz. Costumava ser aplicada à fronte do faraó e dos iniciados como que para lhes conferir a visão da eternidade para além dos obstáculos ainda por vencer. É apresentada pelos deuses aos defuntos, observa Maspero, como um símbolo de vida eterna, cujos eflúvios são vivificantes.

Para Paul Pierret, é igualmente um sím­bolo de proteção dos mistérios sagrados. Havia numerosos amuletos (Ta ou fivela de cinto) em pedra dura, em pasta de vi­dro ou em madeira de sicômoro* dourada. As mais das vezes em jaspe ou em quartzo vermelho, opaco, que se pendurava ao pes­coço da múmia... O texto especial do capítulo 46 do Livro dos mortos, gravado sobre esse filactério, confiava o defunto à proteção de Isis.
 Na arte africana, os motivos crucíferos, com as linhas ou com folhas de mandioca, são numerosos e ricos de significado. A cruz tem, em primeiro lugar, um sentido cósmico; indica os quatro pontos cardeais; significa a totalidade do cosmo. Basta acrescentar um círculo em cada extremida­de e ela passa a simbolizar o sol e seu curso. Terminada em arcos de círculo, ela representa, para os Bamoun, o rei. Encru­zilhada*, ela exprime também os caminhos da vida e da morte, uma imagem do destino do homem. Entre os peúles, é costume, quando entornam o leite, desastradamente, molharem os dedos nas gotas ou na poça e desenharem no peito uma cruz.
A associação cruz-espiral resume a orga­nização do mundo segundo o pensamento dos bantos do Kasai do Zaire (Congo, Lulua e Baluba). O eixo vertical dessa cruz une a terra (morada dos homens e, na sua expressão ctoniana, das almas mortas) ao Céu Superior, morada do Deus Supremo. Ele próprio está no centro de uma cruz, nos braços da qual assistem os quatro gênios superiores, seus assessores. O eixo horizontal liga o mundo dos gênios bons (a leste) ao dos gênios maus (a oeste). O centro dessa cruz primordial é a encru­zilhada da Via-Láctea, onde as almas dos mortos, depois de terem franqueado uma ponte, são julgadas e, em seguida, dirigidas para a esquerda ou para a direita (a oeste ou a leste), segundo seus méritos. De um para outro desses quatro planos primor­diais, Gênios, Espíritos e Almas evoluem em espiral.
Essa construção arquetípica preside à ordenação arquitetural dos compartimentos e lugares de reunião bem como à disposi­ção hierárquica dos membros de uma famí­lia ou de uma sociedade, uns em relação aos outros.

Assim, no recinto familiar, a casa do homem fica no centro de uma cruz sobre cujos braços estão dispostos, na ordem hierárquica norte, sul, leste, oeste, as casas de suas quatro mulheres. Também nas cla­reiras onde se reúnem os membros das Sociedades Secretas, os Quatro Grandes Iniciados instalam-se em torno do centro, lugar do chefe supremo, invisível, na interseção dos braços de uma cruz e de uma espiral*, igualmente originada desse centro. Para as mesmas popula­ções, a cruz tatuada, gravada, forjada etc. simboliza, ao mesmo tempo, os pontos car­deais e as quatro vias do universo que levam à morada dos Gênios (Céu ou nor­te), à dos homens (embaixo), à das almas boas (leste) e à das más (oeste).

A cruz escreveu Guénon, é, sobretudo, símbolo da totalização espacial... O símbolo da cruz é uma união dos contrários... Que se deve comparar tanto com o Kua (união do Yang e doYin) quanto com a tetraklis pitagórica. Esse simbolismo é particularmente sensível na tradição mítica dos mexicanos antigos. A cruz é o símbolo da totalidade do mundo, e a ligadura central dos anos. Quando os antigos escribas pro­curavam representar o mundo, eles agrupa­vam em forma de cruz grega ou de cruz-de-malta os quatro espaços em volta do centro. Melhor ainda: a mitologia mexicana nos dá toda a paleta simbólica que vem se agrupar sob o sinal-da-cruz: é Xiuhtecutli, o deus fogo, que habita a fornalha (centro) do universo. Lugar da síntese, esse centro tem uma aparência am­bígua: um aspecto nefasto e um aspecto favorável. Enfim, no Códex Bórgia, o cen­tro é figurado por uma árvore multicor, cuja ambigüidade vertical não deixa dúvi­da. É coroada por um Quetzal, o pássaro do Leste, e brota do corpo de uma deusa terrestre, símbolo do Ocidente. Acresce que essa árvore cósmica está flanqueada de um lado pelo grande deus Quetzalcoatl, o deus que é sacrificado na fogueira para dar vida ao sol; de outro, por Macuilxochitl, deus da aurora, da primavera, mas também dos jogos, da música, da dança, do amor.
Para o índio da América, como para os europeus, a cruz romana é ò símbolo da árvore da vida, representada por vezes sob a sua simples forma geométrica, por vezes com extremidades ramificadas ou foliáceas, como nas célebres cruzes de Palenque.
No Códex Ferjervary Mayer, cada um dos pontos cardeais da terra vem represen­tado por uma árvore em forma de cruz coroada por um pássaro.

Em certos códices, a árvore da vida é representada por uma cruz de Lorena, que tem, nos braços horizontais, sete flores, representando sem ambigüidade a divindade agrária. Em outros casos, o septenário divino é representado  por   seis   flores  e   o Pássaro Solar no meio do céu.
Ao fim do seu estudo sobre a significação dos  pontos cardeais para os mexicanos antigos, J. Soustelle pode dizer que a cruz do mundo na sua totalidade.

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